Para a imprensa
Todo jornalista sabe que há várias formas de contar uma mesma história, e a escolha das palavras que serão usadas para descrever os fatos em uma matéria ou reportagem afeta a percepção que o público terá do que é narrado: a mesma verdade, contada de modos diversos, sugere ao leitor, ouvinte ou espectador interpretações diversas. As organizações que lutam pelo direito de mulheres, negros e homossexuais, por exemplo, há décadas apontam usos linguísticos que carregam variados graus de enviesamento ou mesmo de preconceito. O fato de referências ao homossexualismo como uma “anomalia” que requer “cura” serem cada vez menos aceitáveis em conversa civilizada reflete uma mudança de consenso social obtida, em parte, pela adoção de um padrão de linguagem mais equilibrado em relação ao tema no discurso público.
No que diz respeito à linguagem utilizada para tratar de assuntos religiosos, a imprensa brasileira tem um viés bastante claro, determinado pela aceitação plena da terminologia cristã tradicional, em especial a católica, como padrão de “normalidade”, sendo “anômalas” as alternativas. É verdade que esses padrões também estão largamente presentes tanto na fala coloquial como na culta, mas um dos papéis importantes dos grupos de ativismo é apontar os vícios presentes em nossas ações. Mesmo que os órgãos de imprensa optem por permanecer utilizando as formas linguísticas tradicionais, o mínimo que se espera deles é que tomem essa decisão de maneira consciente.
Segue abaixo uma pequena lista de práticas jornalísticas usuais cuja aplicação, entendemos, não apenas segue o padrão dominante mas também, inevitavelmente, revela uma parcialidade no tratamento de temas religiosos – seja assumida de forma consciente ou adotada por mera inércia cultural – que viola os ideais de equilíbrio e pluralismo que são a marca do melhor jornalismo.
Deus
Uma rápida passada de olhos pela história humana, mesmo apenas em nosso continente, revela uma grande lista de deuses, cada um com seu próprio nome. O deus judaico-cristão, por exemplo, é conhecido no Velho Testamento pelo tetragrama que forma, em português, a palavra Javé. O contexto das histórias ali presentes é o de uma luta bastante violenta e cheia de sangue, do judaísmo contra as religiões concorrentes dos povos vizinhos. Não por acaso, o primeiro mandamento do decálogo é “não terás outros deuses diante de mim” (Deut 5). Os primeiros séculos do cristianismo não foram diferentes, em sua luta contra crenças politeístas e pagãs, e o islã, terceira religião a surgir do mesmo tronco comum, seguiu padrão semelhante. Sem a fundação do monoteísmo, toda essa grande árvore vem abaixo. Deste modo, sempre foi importante reafirmar o monoteísmo através da negação de todos os demais deuses. Chamar o deus da matriz bíblica de Deus, com maiúscula, como se nenhum outro existisse, é uma maneira de fazer essa afirmação monoteística presente em nossa linguagem. A opção não é diferente daquela de um político que exige ser chamado de O Político — e a história está cheia de exemplos como esse. Entendemos, portanto, que esse uso linguístico, por mais universal que seja, inegavelmente diminui e despreza todas as crenças politeístas, animistas ou panteístas – e mesmo monoteísmos de outras matrizes – , negando implicitamente seu valor. Falar em “Deus” contribui para manter os leitores na ignorância a respeito de outras crenças, e assim fomenta a desinformação e, mesmo, o preconceito que sabemos existir para com grupos como os religiosos de matriz africana, que são politeístas. Um indivíduo que sempre leu a palavra “Deus” na imprensa jamais se dará conta da diversidade religiosa que existe à sua volta, e não poderá respeitá-la, porque os textos que ele leu em toda a sua vida não colocam as diferentes crenças no mesmo patamar: o cristianismo tem Deus; os outros têm divindades, ou, pior, só “demônios”. Como proceder, então?
Uma leitura mais equilibrada sugere que todas as divindades sejam chamadas da mesma maneira: divindades ou deuses. Assim, “Deus”, quando usado fora de citações textuais de fiéis ou líderes religiosos, é na verdade uma grafia arrogante para “o deus dos judeus, cristãos e muçulmanos”, “o deus do cristianismo”, ou, de maneira mais geral, “o deus dos monoteísmos abrâmicos”, pois nem todas as pessoas que se identificam com o monoteísmo no ocidente também se identificam com o cristianismo. É verdade que o número de toques aumenta muito, mas é um pequeno preço a se pagar por uma escrita mais consciente, mais correta, mais neutra e menos discriminadora.
Essa posição foi muito bem detalhada pela jornalista Alexandra Lucas Coelho em seu artigo Deus e deus (I) (outros links aqui e aqui)
Jesus
Em português, o nome da figura central do cristianismo é Jesus. Naquela época e lugar os sobrenomes não eram a prática corrente de hoje, e para resolver os homônimos era comum acrescentar um epíteto de procedência (“Pitágoras de Samos”, “Jesus de Nazaré”, etc.), mas esse não é o caso da palavra grega Χριστός (Khristós), traduzida para “cristo”, que significa “ungido”, e é equivalente ao hebraico מָשִׁיחַ (mašíaḥ,) que significa messias. É por isso que algumas passagens bíblicas falam em “Jesus, o Cristo”, “tu és o Cristo”, etc. Os seguidores de Jesus ficaram conhecidos como cristãos porque acreditavam que ele era o messias, ou o cristo. Nenhuma outra religião o vê como o messias, incluindo o judaísmo, que ainda espera pela vinda de seu “ungido”. É por isso que qualquer referência ao fundador do cristianismo como Jesus Cristo ou Cristo necessariamente carrega um viés de aceitação da teologia cristã. Referências neutras devem ser feitas simplesmente com o nome Jesus.
Nossa Senhora
Embora poucos notem, “Nossa Senhora” é antes um título do que um nome. O “senhora”, mais do que uma referência de respeito, também se traduz como uma figura de autoridade, como um dos pólos da relação senhor/escravo. Esse título contém uma primeira pessoa do plural que deixa inescapável o comprometimento essencial da pessoa que o enuncia: não é apenas senhora de alguns, ou senhora dos outros, ou a senhora pessoal do falante, mas é nossa senhora, incluindo a mim, e presumivelmente a todos que me ouvem ou lêem. Isso fazia todo sentido quando se falava e se escrevia em universo 100% cristão. Mas isso deixou de ser assim há muito tempo. Os religiosos e a igreja compreensivelmente insistem em utilizar essa terminologia porque, assim como acontece com outras palavras, ela cumpre o efeito de anular, ao menos no discurso, a existência de qualquer posição divergente. Mas isso não significa que as pessoas que não têm compromisso com essa propaganda devam seguir o mesmo modelo. É fácil de imaginar o ditador de um país obscuro determinando que seu nome é “Nosso Imperador”, e exigindo ser chamado assim por todos. Mas alguém, em sã consciência, o chamaria assim se tivesse opção? É possível sequer imaginar que a mídia internacional cedesse a sua megalomania? Exigir que pessoas não cristãs e meios de comunicação supostamente neutros em termos de religião repitam o uso da expressão “Nossa Senhora” é igualmente absurdo — e no entanto, é isso que acontece. As opções são simples: falar somente em “Maria”, e eventualmente acrescentar “chamada de Nossa Senhora pelos católicos”.
Virgem Maria
Ao menos em termos globais, poucas pessoas acreditariam que uma mulher pudesse conceber miraculosamente, sem a interferência de um pai ou de qualquer tecnologia moderna. Assim como acontece com Jesus, existe aqui um nome e um título. O nome é simplesmente Maria, e usar o título junto com ele implica que o interlocutor está tomando partido: ele está afirmando que Maria era virgem. Esse não deve ser o papel de um jornalista, a não ser que deseje fazer proselitismo religioso.
Seleção de fontes
Salvo as exceções representadas pelos colunistas especializados – geralmente nas áreas de política, economia ou artes – o jornalista que se debruça sobre uma pauta raramente é um especialista no tema “quente” do dia e, para dar maior substância ao relato que produzirá, tende a buscar fontes que tenham legitimidade e credibilidade para discorrer sobre o assunto: médicos, quando a questão é de saúde; juristas, quando se trata de uma polêmica que diz respeito aos tribunais; biólogos ou ambientalistas, quando o tema é ecologia; e assim por diante.
As fontes procuradas tendem a apreciar a atenção do jornalista porque percebem, conscientemente ou não, que o ato de emprestar legitimidade é de mão dupla: se o especialista legitima o relato jornalístico, o jornalismo legitima a palavra do especialista perante a opinião pública.
É nesse segundo aspecto, da legitimação perante a opinião pública, que a tendência generalizada das redações de procurar teólogos e outras figuras religiosas quanto o tema em questão envolve questões éticas se mostra problemática: gera no leitor a impressão de que a única perspectiva válida para tratar desses temas é a religiosa; pior: numa sociedade que se pretende laica, legitimiza a interferência dogmática nas decisões de Estado.
Seria interessante se os jornalistas buscassem renovar sua paleta de fontes para esse tipo de questão, abrindo espaço para outras perspectivas também presentes na sociedade e tão ou mais relevantes que a religiosa.